Estreia: "Tudo Pode Dar Certo", de Woody Allen
sexta-feira, 30 de abril de 2010 - 6 Comentários
Há momentos na vida em que se deve abraçar seus valores. Há a coisa certa a ser feita e a coisa que lhe dá mais prazer. E não dá pra ignorar o valor de fazer o que lhe dá prazer. É por isso que, nesta sexta-feira em que estreia Homem de Ferro 2, com Robert Downey Jr., Scarlett Johansson e Gwyneth Paltrow (e com trilha todinha do AC/DC!), BLOGIE escolhe falar de outra estreia: Tudo Pode Dar Certo, novo filme de Woody Allen.
Jamais subestime um novo Woody Allen - meu mandamento número 1 da cinefilia.
(Não que eu veja problemas no Homem de Ferro 2 - pretendo conferir o longa ainda neste final-de-semana, e terei prazer em dividir minhas impressões com o leitor.)
Tudo Pode Dar Certo, pra começar, é mais um caso de título mal adaptado para o português. O título original, Whatever Works, é a base da filosofia de vida do protagonista, Boris, um acadêmico brilhante e absolutatmente infeliz com o funcionamento do Planeta dado pela humanidade. Boris acredita que o ser humano estraga tudo, e suas aspirações e expectativas jamais serão atendidas plenamente. Casamento, carreira, dinheiro, sexo, amigos, arte - nada é capaz de trazer a felicidade. Então, cada um que se agarre àquilo que funcione na sua vida (whatever works, ou "qualquer coisa que funcione"). A tradução traz consigo um otimismo que não existe no filme.
Aliás, otimismo é tudo a que este novo Woody Allen se opõe: Boris é o cético definitivo. Não acredita em nada; abandonou sua carreira de físico indicado ao prêmio Nobel; pulou fora do casamento com uma mulher linda, inteligente e rica; tentou se matar e deu errado; impaciente, ganha a vida dando aulas de xadrez para crianças; passa os dias xingando seus amigos de imbecis e cretinos, enquanto desfila seu amargo discurso pelas ruas de Nova Iorque (sim, Woody volta a Manhattan). O negativismo não é incomum na obra de Allen; a diferença é que, ao invés do baixinho atrapalhado, gago e terno que normalmente dá voz às palavras do autor, o protagonista é vivido por Larry David, o criador da série Seinfeld e protagonista da série Curb Your Enthusiasm. David faz de Boris um cara francamente desagradável e agressivo.
A coisa é tão incômoda que, após dez minutos de Boris discursando suas ideias diretamente para a câmera, imaginei gente se levantando e deixando a sala (ele é tão onisciente que sabe estar em um filme, e provoca o público, avisando que, se o espectador espera um daqueles filminhos pra "se sentir bem", que deixe a sala e vá procurar massagem nos pés). Mas ninguém saiu.
O povo pagou pra ver e foi recompensado com a entrada em cena sempre agradável de Evan Rachel Wood (de Across the Universe e Correndo com Tesouras). Ela é Melody Celestine, uma tapada caipira que chega a Nova Iorque com uma mão na frente e outra atrás. Melody é acolhida - não sem alguma resistência inicial - por Boris em seu apartamentinho nojento. O choque entre uma "mente privilegiada" e a garota simplória rende muitas piadas engraçadíssimas - como o suposto passado de Boris como jogador do NY Yankees -, mas o mais importante é notar a gradual conversão de Melody em uma esnobe sub-intelectual.
O fenômeno da transformação de gente comum em socialites intragáveis ou intelectuais afetados é um fato não incomum nos filmes de Allen - por exemplo, a cozinheira de biscoitos que fica milionária em Trapaceiros, ou o professor de tênis em Match Point. Mas aqui a coisa é muito mais pesada: não só Melody, como seus pais - que chegam a NY para buscar a filha - passam por uma rápida e absurda transformação, passando de republicanos religiosos da "Deep America" a artistas, gays, maluquetes liberais.
As piadas que polvilham esse processo são sensacionais - Woody Allen em grande forma, coisa digna dos seus melhores filmes dos anos 70 -, mas o sentido por trás de tudo é bem mais interessante, porque corrobora a tese de Boris: cada um constata sua incapacidade para amar e ser feliz (aliás, a cidade grande e sua pluralidade garantem essa insatisfação constante), e acaba buscando algumas variações no menu de alternativas para a felicidade. Qualquer coisa que funcione.
Veja o trailer, com legendas em português (português de Portugal, mas funciona!)...
Li por aí críticas dizendo que se trata de tema requentado dos velhos filmes de Allen, ou que o filme é uma fábula sem moral da história, ou que Larry David estraga tudo com sua raiva e misoginia. Tudo bobagem. Tudo Pode Dar Certo é uma comédia rasgada e inteligente, Woody Allen no 220 desencapado, verborragia liberada e microfone aberto, para diversão daqueles que prezam um bom texto, personagens intrigantes e uma baita direção de elenco. E há um sentido central: quanto mais o ser humano submerge na cultura cosmopolita, cheia de conhecimentos acadêmicos e artísticos, mais toma ciência da sua incapacidade de ser feliz. E é por isso que a cidade grande se torna essa Torre de Babel maluca, com gente tentando de tudo pra driblar a falta de graça na vida. Vale tudo.
Está em cartaz, não perca. Aproveite essa oferta divina dada aos pobres mortais: um filme do Woody Allen por ano. Tão certo quanto o especial de fim de ano do Roberto Carlos, só que imprevisível.
PS: como complementos a este texto, sugiro que o leitor procure as críticas da Veja (Isabela Boscov, que idolatra Allen, desceu a lenha) e da Folha de São Paulo (Inácio Araújo, que não costuma elogiar os filmes do baixinho, elegeu Tudo Pode Dar Certo como o melhor trabalho de Allen nesta década). São dois ótimos textos!
Marcadores: cinema, estreias, Evan Rachel Wood, Larry David, Tudo Pode Dar Certo, Woody Allen
Assinar
Postagens [Atom]